Não faltaram em Genebra, anos após a morte de Calvino e não muito tempo distantes de nós, protestantes calvinistas que julgavam severamente Calvino e suas obras. Tal é, entre outros, o senhor Duceman, chanceler do Estado, que em 1864 publicou um opúsculo provando:
1º - Que Calvino, longe de iniciar uma era de liberdade, de paz, de fraternidade, de sabedoria e de caridade cristã em Genebra, não fez outra coisa que inaugurar e plantar no solo da república um regime civil, político e religioso, o mais selvagem e feroz, um governo delator, suspicaz, invejoso, usurpador e sanguinário, que no tempo de Calvino, e ainda muito depois, não deixou de exercer atos do mais cruel e brutal despotismo. O autor chega a esta conclusão apresentando provas com exatidão matemática, e citando milhares de homens e mulheres a quem o vingativo e impiedoso reformador mandava prender, banir, multar, matar e queimar quando tinham a desgraça de desagradá-lo no gerenciamento dos negócios ou nas controvérsias religiosas.
2º - Que Calvino, não tardando em pôr-se abertamente em contradição com o princípio fundamental do protestantismo: Não há outra autoridade na Igreja que a Bíblia, substituiu a autoridade dos bispos e a do Papa segundo sua própria vontade, arbitrária, absoluta e opressora, até o ponto que todos os negócios de ordem civil ou religiosa, e toda a pessoa, desde o mais alto escalão da república até o mais humilde pastor da aldeia, deviam submeter-se a seu férreo jugo. O autor apresenta muitíssimos fatos para provar que o grande e pequeno Conselho da República, o Consistório, a venerável Companhia, os anciãos, as leis e os tribunais tinham que curvar-se sempre à vontade do violento e impetuoso reformador.
3º - Que Calvino, em sua orgulhosa impiedade, chegou ao ponto de pretender identificar sua causa e sua vontade caprichosa com a causa e a vontade de Deus, afirmando que Deus quer o que quer Calvino.
4º - Que Calvino, à custa de infrações, punições e sentenças de morte, conseguiu aniquilar o partido nacional de Genebra e se tornar juiz da situação, exercendo o poder por meio de estrangeiros vindos de todas as partes para porem-se cegamente a seu serviço.
5º - Que os pregadores chamados e autorizados por Calvino, e até o próprio Calvino, que juntamente com seus falsos profetas não cessavam de declamar contra a imortalidade e os abusos do clero romano, tiveram desde os princípios da Reforma costumes tão depravados, que causariam repugnância à plebe das mais licenciosas cidades. Daqui o provérbio de que ninguém se converte ao protestantismo para tornar-se melhor.
E de fato, não se podia esperar outros frutos de uma doutrina que sustenta: Que as boas obras são inúteis; que é impossível a virtude cristã e meritória; que o homem carece do livre arbítrio; que obra o mal por necessidade; que está fatalmente predestinado ao inferno, sem consideração às suas obras boas ou más, etc., etc.
6º - Que as declamações de Calvino e de seus partidários tiveram por efeito imediato precipitar a Genebra em um abismo tão profundo de desregramento e confusão, que os ódios, as vinganças, as sedições e todo o gênero de revoltas tornaram-se comuns no país.
Tais são, em resumo, as consequências que deduz este autor protestante na obra que publicou por ocasião do aniversário da morte de Calvino.
A estes acontecimentos biográficos, que muitos protestantes contemporâneos e adeptos a Calvino nos deixaram, acrescentamos um fato notabilíssimo concernente aos seus milagres, contado por seus próprios partidários [1]. Provocado e impelido pelos católicos a provar sua missão por meio de milagres, como fizeram os apóstolos, Calvino resolveu responder imprudentemente a este desafio tentando ressuscitar um morto. Um homem chamado Bruleus, que havia abandonado seu país natal para estabelecer-se em Genebra e que, encontrando-se em grande miséria, desejava conciliar-se à benevolência de Calvino e obter por este meio algumas das esmolas que o reformador distribuía, proporcionou uma ocasião propícia para que o prodigioso milagre fosse realizado. Calvino, desde então, prometeu-lhe ajuda, sob a condição de que ele e sua mulher se submetessem a servi-lo de instrumento em um assunto que exigia demasiada prudência e confiança.
Bruleus, vendo-se obrigado pela miséria, não havendo outra saída, aceitou estas condições, e para agradar o reformador, teve de fingir-se enfermo. Os ministros lhe encomendaram às orações e à caridade dos fiéis, porém a enfermidade foi-se agravando, e Bruleus desempenhou maravilhosamente seu papel, fingindo-se de morto. Avisado sigilosamente, Calvino saiu com o pretexto de ir passear, acompanhado de um grande número de amigos, que seriam as testemunhas do milagre. Dirigiu-se então, aparentemente de forma casual, até o local onde jazia o fingido defunto.
Os gritos e lamentos de uma mulher, que com o maior desespero arrancava os cabelos, chamou a atenção de Calvino, que lhe dirige algumas palavras e depois caminha com ela à casa, onde encontra Bruleus fingindo-se de morto. Calvino, com todo o seu séquito, cai de joelhos ante o leito de morte. Roga a Deus em voz alta que se digne fazer ostentação de seu poder, devolvendo a vida àquele homem, e que manifestasse sua glória aos olhos de todo o povo, provando com este prodígio a missão de reformar sua Igreja, que havia confiado a Calvino.
Concluída a oração, levanta-se o pretendido taumaturgo com ar majestoso, aproxima-se do morto e, tomando uma de suas mãos, lhe ordena em nome de Deus que se levante. Repete esta intimação por três vezes, elevando cada vez mais a voz; porém o morto não respondia. Sua mulher se aproxima, e lhe dá fortes sacudidas, em vão: era frio cadáver!
Foi então que a viúva começou a derramar verdadeiras lágrimas e a romper-se em lamentos não fingidos, lançando contra Calvino uma torrente de maldições, e narrando publicamente a miserável farsa que havia tentado representar.
Os covardes aduladores de Calvino, acrescenta Duceman, negam ousadamente este fato, que já está, contudo, suficientemente provado, pois, independente de muitas outras razões, a confissão das testemunhas que o presenciaram, e sobretudo da própria mulher que teve um papel ativo nele, não deixa brecha a nenhum tipo de dúvida.
Eis aí os milagres que os hereges realizam, como já em tempos atrás observava Tertuliano escrevendo a este propósito: “Volo igitur et virtutes eorum proferri. Nisi quod agnosco máximam virtutem eorum qua apostolos in perversum aemulantur. llli enim de mortuis vivos faciebant, hi de vivis mortuos faciunt”. (É preciso dizer algo sobre os prodígios obrados por eles [pelos hereges]. Conheço a grande virtude da qual se dizem dotados, e na qual se esforçam para imitar os apóstolos, enquanto fazem todo o contrário, pois estes davam vida aos mortos; mas eles dão morte aos vivos) [2]. Tão verdadeiras são estas palavras, que os hereges de todos os tempos são sempre os mesmos.
Permita-me, com paciência (!), insistir e acrescentar algo mais sobre Calvino. Posto que tantas condolências inspiraram muitos dos sectários da Reforma – e inspiram até hoje! –, não podemos nem devemos omitir o término de sua carreira mortal, conforme nos narra seu discípulo Giovanni Harem, testemunha ocular: “Calvino, disse, entregando-se ao desespero nos últimos dias de sua vida, morreu devorado pelos vermes e consumido por uma dessas ignominiosas e repugnantes enfermidades com que Deus geralmente castiga aos que se rebelam contra ele. Ao expressar-me deste modo, tenho a segurança de que nada pode desmentir-me, pois eu estava presente e vi com meus próprios olhos seu trágico e funesto fim”.
Eis aqui as palavras originais deste escrito:
“Calvinus in desperatione finiens vitam obiit turpissimo et faedissimo morbo, quem Deus rebellibus comminatus est, prius excrutiatus et consumptus. Quod ego verissime attestari audeo, qui funestum et tragicum illius exitum his meis oculis praesens aspexi” [3].
Não menos sombrias são as cores com que Conrado Schlusselburg retrata esta morte desastrosa: “Deus, disse, até neste mundo manifestou seu juízo sobre Calvino, visitando-o com a vara de seu furor e castigando-o com terrível rigor na hora de sua funesta morte, pois lhe feriu com sua mão poderosa de tal modo, que desesperando este herege de sua própria salvação, invocando aos demônios, jurando, maldizendo e blasfemando, exalou miseravelmente seu espírito maligno. Enquanto isso, manavam asquerosos vermes de uma apostema ou úlcera tão hedionda, que nenhum dos presentes podia suportar seu fedor”.
Eis aqui, também, as palavras originais deste escrito:
“Deus etiam in hoc saecuIo judicium suum in Calvinum patefecit, quem in virga furoris visitavit atque horribiliter punivit ante mortis infelicis horam. Deus enin manu sua potenti adeo hunc haereticum percussit, ut, desperata salute, daemonibus invocatis, jurans, execrans et blasphemans, misserrime animam malignam exhalavit. Vermibus circa pudenda in aposthemate seu ulcere faestissimo crescentibus, ita ut nullus assistentium factorem amplius ferre posset” [4].
Este artigo jamais terminará se continuarmos falando de Calvino. Digamos, portanto, alguma coisa de seu discípulo favorito, Théodore de Bèze, sem recorrermos a testemunhos de escritos católicos, mas dos próprios protestantes.
Perguntam os luteranos: por que causa Bèze não disse uma só palavra em sua Vie de Jean Calvin das flores de lis com que foi marcado ou selado seu herói? Ao qual respondem, que havendo merecido o panegirista (Bèze) ser marcado com o mesmo selo pelo mesmo delito e pela mesma heresia de seu mestre, tinha, portanto, infamado a si mesmo.
Daqui a aversão dos calvinistas pela flor de lis, até o ponto de suprimi-la em todas as pinturas, de arrancá-la da terra em que brota e de não desejá-la crescer em seus jardins [5].
Eis aqui, ademais, o retrato deste panegirista de Calvino e herdeiro de sua supremacia em Genebra, deixado pelo luterano Tilemann Heshusius: “Quem não se admira da incrível audácia deste monstro, cuja vida vergonhosa e infame é conhecida em toda a França por seus epigramas obscenos e cínicos? No entanto, ao ouvi-lo, crerias que era um santo, um Jó, um dos anacoretas do deserto, e mais digno que São Paulo ou São João. Tanto é que se esforça em proclamar por todas as partes a historieta de seu exílio, de seus trabalhos, de sua pureza e da admirável santidade de sua vida, como aqueles de quem dizia Juvenal [Decimus Iunius Iuvenalis]: Qui curios simulant, et bacchanalia vivunt” [6].
“Bèze, dizia outro escritor, é o protótipo daqueles homens ignorantes e grosseiros, que, na falta de razões e argumentos, recorrem às injúrias, ou daqueles hereges que não têm outro meio de defesa que os insultos... Este homem imundo, com todo artifício e impiedade, escreve suas satíricas blasfêmias nada mais nada menos como se fosse um demônio encarnado”.
O mesmo autor acrescenta que, depois de haver dedicado vinte e oito anos a ler mais de duzentas e vinte publicações calvinistas, em nenhuma encontrou tantas injúrias e blasfêmias como nos escritos desta fera... e que se alguém o pusesse em dúvida, bastava apresentar seus famosos diálogos contra o doutor Heshusius, os quais não parecem escritos por um homem, mas pelo próprio Belzebu em pessoa.
“Eu ficaria horrorizado, continua, em descrever as obscenas blasfêmias que este ser impuro e ateu vomitou, com uma mistura nauseante de impiedade e de bufonearia, contra um dos assuntos mais dignos de veneração. Sem dúvida, havia mergulhado sua pluma [objeto usado para escrever] na tinta do inferno”.
Alguém dirá, talvez, que os luteranos não merecem crédito por serem eles antagonistas dos huguenotes (calvinistas). No entanto, não dissemos coisa alguma que não é atestada pelos próprios calvinistas. Estes exaltavam Bèze como escritor garboso e elegante; porém, quanto a seus costumes, o apresentavam como um dos homens mais malvados de seu tempo: libertino, ímpio e profanador das coisas mais santas, que zomba delas com escárnio, atitude própria de um ateu; cruel e sanguinário, está sempre disposto a inspirar os mais negros e execráveis atentados; impudente e dissoluto, está submergido na lama das mais degradantes paixões, como aparece em Les Juvenilia, e principalmente naquele epigrama em que, aludindo à sua favorita Candida e à sua amante, tem o cinismo não só de acusar-se, mas até de vangloriar-se do mais abominável delito.
Para driblar as pesquisas do Parlamento e escapar da fogueira, vendeu o priorado de que foi investido, e outro pequeno benefício que possuía por resignação de seu tio Nicolas de Bèze, e fugiu para Genebra em companhia de sua Candida, que não era outra que uma mulher de um alfaiate de Paris, chamada Claudia, e que, a pedido de Bèze, casou-se com ele vivendo ainda com seu esposo.
E deste modo iniciou sua reforma: com um ADULTÉRIO PERMANENTE, que o fazia digno de morte, segundo todas as leis divinas e humanas [7].
PHILIPP MELANCHTHON
Com pouco a ser dito de Philipp Melanchthon, façamos seu breve retrato. Luterano primeiro, depois zwingliano e mais tarde, calvinista; perplexo e vacilante exteriormente, porém sempre incrédulo em seu coração, era conhecido vulgarmente pelo apelido de Veleta da Alemanha. Devido a esta perpétua inconstância, seus próprios partidários lhe recusaram as honras do funeral, e foi-lhe aplicado oportunamente este verso: Nunc me Ponthus habet, jactantque in littora vente [8].
______
Notas
[1] Bolsec, Mem. hist. vit. Calv. – Lindanus, In Jubitat. – Alanus, Corpus, lib. VII, dialog.
[2] De praescript. haeret., cap. XXX.
[3] Giovanni Haren, segundo Pietro Cutzenio.
[4] Conr. Schlusselb. in Theol. Calv., lib. II, fól. 72.
[5] Ibid.
[6] Heshusius, vers. Florim., fól. 1048.
[7] Bolsec, Vit. Théod. Bèze.
[8] Le Ministre ecc., fól. 191.
* Traduções, adaptação linguística e conclusões por: Carlos Wolkartt
POSTAGEM SEGUINTE - "Para quem pensa ser contraditório a esquerda colocar-se contra si mesma, não se esqueça de que a psicologia dialética é essencialmente suicida..."
POSTAGEM ANTERIOR - REBELADO PROTESTANTE: - "Eu não quis dizer literalmente que as Escrituras pregam! Mas agora eu digo com todas as letras: As Escrituras pregam sim. Basta que o leitor creia nelas!"